Fui
uma menina apaixonada por bonecas. Havia as de pano, com vestidos de chita; as
de rosto de louça; a de plástico, com cachos loiros, quase do meu tamanho, um
sonho. Eu cuidava bem delas, penteava, colocava nos berços e carrinhos, pois
eram os filhos que já desejava ter. Também eram minhas alunas. Eu as colocava
em fileiras, fazia chamada no diário de classe, escrevia com giz palavras num
quadro-negro e imaginava que elas eram capazes de soletrar. Avaliava sua
atenção estática como prova de percepção e inteligência.
Quando li o Sítio do Picapau Amarelo,
identifiquei-me com a Emília, a boneca de trapo, a princípio feia e muda que, a
partir do momento que ingeriu uma pílula, passou a falar pelos cotovelos.
Criatura atuante e impositiva que dominou o próprio criador, Monteiro Lobato.
Acompanhei toda a evolução da boneca: as mutações, as tolices, as curiosidades,
o espírito de crítica. Não sei em que livro da coleção, quando lhe perguntam:
“_ Mas quem você é, afinal de contas, Emília?” Ela respondeu de queixinho
empinado: “_ Sou a Independência ou Morte.” A independência, a liberdade, a
autonomia, o bem-estar, o poder de tomar as próprias decisões. Eu me achava a
própria. Quanto desassombro e orgulho. Hoje, adulta e envelhecida, tornei-me
pequena e dependente de algo superior que me guia. O fato é que me diverti tanto com a Emília: o
casamento dela com o porco Marquês de Rabicó; as aventuras com a chave do
tamanho que fazia os insetos tomarem proporções gigantescas; as aventuras com o
rinoceronte Quindim; as conversas com o anjo caído do céu; as peripécias pelas
terras da Grécia Antiga com figuras míticas como Hércules e o Minotauro.
Cavalguei nas caudas dos cometas com minha boneca Emília.
As bonecas também podem ser assustadoras,
sinistras, ameaçadoras. Na feitiçaria são usadas para representar pessoas
trespassadas com alfinetes para causar dores e danos. Assumem a voz dos
ventríloquos e os enlouquecem com sentimentos que não ousariam expressar
abertamente.
Ao sul da Cidade do México, onde a morte é
sempre vista numa mistura de flores e crânios, há um lugar misterioso chamado
Ilha das Bonecas. No meio dos canais e dos nenúfares, uma espécie de santuário
mal-assombrado tem bonecas penduradas em paredes, árvores e varais que vão se
desgastando com o tempo, perdendo a beleza e a inocência e se transformando em
objetos terríveis, lambuzados de sangue e poeira. Conta-se que um antigo
morador da ilha ouviu falar que uma jovem havia se afogado no rio. Quando viu
uma boneca flutuando, tomou isso como sinal, resgatou o brinquedo para agradar
o espírito da menina. Uma boneca só não foi suficiente oferta e milhares se
juntaram a ela, num cenário de filme de terror. Há choros e gritos de quem
perdeu as filhas naquelas águas.
E quantas meninas, corpos de bonecas, agarradas
ainda a suas bonecas, são vítimas de violência sexual, agredidas dentro de suas
casas por pessoas manipuladoras, predadoras, que escolhem a vítima mais tímida,
mais quieta e atacam o alvo fácil, a pombinha cálida, com suas garras de
abutres abusadores.
A Casa de Bonecas, peça teatral do dramaturgo
norueguês, Henrik Ibsen, em meados do século XIX, gerou polêmica e debates no
mundo todo. O difícil tema da exclusão das mulheres. O relacionamento entre
Nora e o marido Helmer parecia perfeito. Ele a chamava de “cotovia”, “esquilo”,
“minha menininha”. Ela era mimada, infantil, uma criança grande, sem
responsabilidade. Um dia, no intuito de agradar e ajudar financeiramente o
marido, Nora envolve-se numa fraude bancária. O banqueiro a chantageia. O
marido, ao descobrir, fica furioso e a julga uma pessoa sem caráter. Depois,
arrependido, pede-lhe perdão. Mas a ilusão se rompera: a filha-boneca, a
esposa-boneca torna-se uma mulher decepcionada. Abandona o marido e os filhos e
vai embora sozinha para compreender a si e ao mundo. Declara que só voltará se
acontecer um milagre: a transformação profunda de suas almas para uma
verdadeira vida em comum. Partiu em busca da maturidade. Boneca fria.
E há homens tão solitários que se contentam
com a companhia de uma boneca daquelas feitas sob encomenda para o sexo. É a
história contada no intrigante filme A Garota Ideal, sob a direção de Craig
Gillespie. Lars mora na garagem da casa de seu irmão. Não gosta de sair. Um dia
avisa que trará Bianca, sua namorada, para o jantar. Explica que ela não fala
inglês, que não anda, que precisa de uma cadeira de rodas. O irmão e a cunhada
ficam felizes com a notícia e arrumam o quarto de hóspede. Lars aparece com a
namorada e descobrem que ela é uma boneca. Tudo estranho, bizarro, mas muito
delicado. Delicado entender como é difícil, às vezes torturante, a sede de amar
e ser amado.
Guardo minhas bonecas em prateleiras
iluminadas, em baús chaveados no meu coração. Fui mãe, professora, poeta
observada pelo jogo dos olhos azuis de vidro das minhas bonecas.
Raquel Naveira - Escritora, Doutora em
Língua e Literatura Francesas
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