VITOR KAINGANG. PRESENTE!!!
CARTA À SOCIEDADE CATARINENSE
O
brutal crime cometido ao pequeno Vitor Pinto Kaingang, no dia 30 de dezembro
passado, em Imbituba (SC), não é apenas um caso individual, isolado do
contexto no qual vivem os povos indígenas no Brasil, e em Santa Catarina.
Não obstante as razões obscuras e individuais que levaram ao crime,
ele revela a ponta de um enorme iceberg: as violações históricas aos direitos
indígenas, suas condições de vida hoje e a forma brutal como setores
da imprensa, políticos e empresários os atacam.
Os
povos indígenas têm seus direitos assegurados pela Constituição Federal, em
especial nos Artigos 231 e 232. Estes direitos incluem o reconhecimento à organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam. Isso implica dizer, que eles têm o
direito de participar da sociedade brasileira a partir de seus modos culturais
próprios.
Em
Santa Catarina esses povos se denominam Kaingang, Guarani e Laklãnõ Xokleng
que vivem em menos de 1% do território estadual. Nem todas as
terras estão devidamente regularizadas pelo Estado. Algumas delas envolvem
conflitos com outros trabalhadores, agricultores e moradores de “boa fé”, também
vítimas de políticas inconsequentes do Governo em relação à terra. Pela pequena
extensão das terras a resolução dos conflitos poderia ser simplificada se não
fosse o governo do estado de Santa Catarina se posicionar diretamente contra a
demarcação das terras.
Esta
situação interfere diretamente na reprodução da vida dos grupos familiares
indígenas.
Muitos
indígenas precisam trabalhar fora de suas terras e em contextos absolutamente
alheios a sua cultura, para conseguir garantir a sobrevivência mínima,
muitas vezes em condições muito precárias.
Nestes
contextos, a exploração e precarização do trabalho, que atinge todos
os trabalhadores, se reveste, na maioria das vezes, do preconceito étnico, levando a situação de violência, humilhação e sofrimento adicionais. Assim, despossuídos da terra e de seus recursos, os indígenas se veem
forçados a vender sua força de trabalho em empresas que não respeitam
direitos trabalhistas, muito menos étnicos.
Por
conta disso o artesanato tem se tornado uma significativa fonte de renda
para os indígenas, e a sua comercialização no verão é bastante importante
para a garantia de recursos necessários à sobrevivência. Os Kaingang, em sua
maioria moradores do Oeste de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul e do
Paraná costumam deslocar-se para o litoral vender suas cestarias, bijuterias,
brinquedos e demais obras. Esta atividade é muito apreciada pelos
indígenas, e envolve várias etapas de um processo que inicia
nas suas terras, com a coleta de sementes, cipós, taquaras e demais
materiais para sua confecção. É um trabalho que envolve mulheres, homens e
crianças, imbuída de elementos culturais indígenas, que mesmo incorporando
elementos culturais e materiais não indígenas, isto não significa perda da
identidade cultural, mas aponta a importância das trocas de saberes valorizadas
pelos indígenas quando das relações com os não indígenas". Por isto,
os indígenas expõem e vendem seus artesanatos nas praias de Santa Catarina há
mais de décadas. Assim a confecção de artesanato é um importante elemento
educativo, de transmissão da cultura, para os indígenas e sua comercialização é
um importante momento de reconhecimento do seu trabalho e de sua identidade.
Por
ser um trabalho carregado de sentido e feito com prazer, as crianças participam
do processo, aprendendo desde cedo com os mais velhos os saberes que o
envolve. Assim como Vitor, que acompanhava seus pais e irmãos em Imbituba,
em dezembro passado.
Por
isto, ao analisar este tipo de atividade, é necessário estar atento aos elementos
culturais e educativos presentes no artesanato, ao invés de enquadrá-lo
como “trabalho infantil” pura e simplesmente, como muitas vezes os
Conselhos Tutelares tem feito, de forma leviana e criminosa, com os grupos
indígenas. Também é importante que as cidades que recebem os indígenas
disponibilizem espaços adequados para sua permanência e pernoites, evitando situações
de vulnerabilidade que, infelizmente, acentuam a truculência de condutas individuais,
como a que aconteceu com o caso do Vitor.
Ainda
não temos um veredicto para a razão imediata e individual deste crime hediondo.
Mas ele se dá em um contexto que revela outros aspectos: Ele se dá em
um momento em que os indígenas, juntamente com os quilombolas, são
atacados pelos grandes grupos econômicos capitalistas, muito bem
representados no Congresso e no Governo, e que querem modificar
radicalmente o processo de reconhecimento de terras tradicionalmente ocupadas
(e também de áreas de preservação) através da Proposta de Emenda à Constituição
nº 215 e tantas outras iniciativas de mudança da lei.
Ele
ocorre num momento que os povos indígenas enfrentam manifestações explícitas de
preconceitos. Mesmo possuindo diminutas áreas para ocupação, afirmações como
“muita terra para pouco índio, são inverdades ainda frequentemente
reproduzidas, bem como, que não produzem e não trabalham vivendo às custas do
governo; além de outras mentiras de xenofobias com relação aos Guarani, que só
fazem aumentar o desconhecimento da questão indígena e não resolver os reais
problemas que sofrem essas populações.
A RBS
e outras empresas que dominam a produção de notícias em SC têm feito
um incansável trabalho de desinformação da população, incentivando
posturas racistas contra os indígenas, através de matérias absolutamente
irresponsáveis tanto do ponto de vista da ética jornalística quanto do respeito
a Constituição, aos direitos humanos e a verdade científica. Exemplo é a Terra Indígena
Morro dos Cavalos, situada a menos de 100 quilômetros de Imbituba, onde Vitor
foi assassinado que é alvo frequente de matérias deste teor, deixando aumentando
a situação de vulnerabilidade e de risco de todos os seus
habitantes. No oeste de SC, onde nasceu Vitor, no Rio Grande do Sul e no
Paraná a situação não é diferente: os indígenas têm sido alvo de violências
explicitas, que, somadas à violência estrutural que compartilham com outros
trabalhadores, sem teto, sem terra, quilombola, pescadores e tantos outros e
outras, fazem deles uma das populações mais vulnerabilidades de nosso
país.
Assim,
ao invés de valorizar a diversidade cultural e garantir aos povos originários
direitos reconhecidos internacionalmente, Santa Catarina compõe o vergonhoso cenário
do preconceito, da ignorância e do desrespeito aos direitos humanos. E
neste contexto que o crime de Vitor acontece.
Por
tudo isto, estamos aqui para:
Exigir
das autoridades policiais e judiciais que investiguem o
caso com toda a seriedade e celeridade que o caso merece;
Que
haja punição dos culpados;
Que em
todos os momentos do processo os direitos da família de Vitor sejam
garantidos;
Que todos
os elementos da cultura Kaingang sejam considerados e respeitados ao longo do
processo, como o direito de usar a língua materna nos depoimentos, inclusive
por parte da imprensa;
Que as
prefeituras das cidades que recebem indígenas durante o verão para a venda
de seus artesanatos oferecendo-lhes, a partir de processos compartilhados
de organização, apoio e acolhimento digno, respeitando seus costumes
e tradições;
Que
o Governo de Santa Catarina modifique radicalmente forma como tem tratado
os povos indígenas, retirando os processos contrários as demarcações de
Terras Indígenas em curso e que chame as secretarias estaduais para discutir conjuntamente
a questão indígena;
Que a
RBS retrate-se publicamente face as matérias criminosas que divulgou
especificamente no Encarte “Terra Contestada”, divulgada em 2014;
Que o
Governo brasileiro regularize imediatamente todas as Terras Indígenas e as
terras de Quilombos de SC.
Nós da
sociedade catarinense estamos atentos, e lutando para que os direitos destes
povos sejam garantidos e implementados!
Carmen Susana Tornquist
Antropóloga e Professora da UDESC
Clovis A. Brighenti
Historiador e Prof. da Unila/Membro do
Cimi Sul
Osmarina de Oliveira
Geógrafa e Membro do Cimi Sul
SELA (M.S.N.S.)
Artista Plástica
Telma Anita Piacentini
Pedagoga/Museu do Brinquedo da UFSC
Viviane Vasconcelos
Antropóloga
Florianópolis,
30 de Janeiro de 2016.
Um mês
do assassinato do Vitor Pinto Kaingang